Entre a aurora e o crepúsculo, inviolabilidade de domicílio, prisão em flagrante e o abuso de autoridade

A origem histórica da proteção do domicílio, inicialmente veio com direito romano e após a Revolução Francesa que praticamente todos os países do mundo adotaram essa proteção frente ao Estado.

No Brasil a proteção constitucional garante a todos que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial[1].

Como se percebe, a Constituição Federal traz, sem sombra dúvida, uma importante conquista para o cidadão que é a inviolabilidade do domicílio e, indiretamente, resguarda, também, o direito à privacidade, intimidade e a propriedade.

E, não só isso, a própria legislação constitucional conforme acima descrito, impõe as hipóteses que podem ser relativizadas o direito à inviolabilidade do domicílio e dentre elas, está a hipótese do flagrante delito.

O Código de Processo Penal considera em estado de flagrante quem está cometendo a infração penal, acaba de cometê-la, é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração ou é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração[2].

Ademais, é importante ser dito sobre alguns problemas práticos do dia-a-dia forense. Qual o horário a policial pode entrar em um imóvel sem cometer uma ilegalidade? Inicialmente, a autoridade policial pode adentrar no imóvel do cidadão a qualquer horário desde que seja um caso de flagrante delito, porém caso seja para ser cumprida uma ordem judicial para prisão ou mandando de busca e apreensão somente durante o dia — período que compreende entre 6h até 18h — ou à noite caso o morado autorize a polícia entrar no imóvel. 

Por fim, configura abuso de autoridade o ato de invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei com pena de detenção de um a quatro anos e multa[3].

Uma outra questão, não menos fundamental, é sobre o trailer, caminhão e o carro são protegidos pela garantia constitucional do domicílio? Em relação aos veículos entende-se que o resguardo constitucional é aplicado somente quando forem utilizados como moradia, exemplo do trailer, cabine de caminhão, barcos-residência etc. Já relação ao carro via de regra não tem a mesmo amparo.

Ainda sobre inviolabilidade de domicílio se aplica também a casa de praia, casa de campo, imóvel comercial etc. Contudo, não se aplica a casa abandonada por esta não está sendo ocupada por ninguém.

Vale ainda ser ressaltado que, não se compreende como domicílio hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, estabelecimentos como bares, clubes, teatros, cinemas, restaurantes, supermercados, shopping centers, enquanto estiverem abertos ao público, não estão compreen­didos pela expressão ‘casa’, podendo as autoridades policiais neles ingressar livremente no exercício de sua função, mesmo sem consentimento ou autorização judicial. Todavia, se esses estabelecimentos estiverem fechados ao público, passam a estar protegidos pela garantia da inviolabilidade do domicílio[4].

Em acréscimo, cabe ao poder judiciário, realizar o controle da legalidade da prisão na audiência de custódia. E, caso haja a configuração de uma prisão ilegal com invasão de domicílio, pode e deve ser relaxado a prisão evitando que seja perpetuado o abuso de poder dos agentes do Estado.

Sobre esse tema, em decisão acertada, e que teve repercussão geral[5], ou seja, em casos idênticos à tese deve ser aplicada por todo o poder judiciário estadual ou federal, o Supremo Tribunal Federal entendeu que: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil[6] e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados”[7].  

Por último, com essa decisão o poder judiciário sinaliza claramente que não tolerará qualquer tipo de abuso, principalmente cometido por agentes do Estado no exercício de sua função, prestigiando a legalidade e a norma escrita na Constituição Federal que deixa cristalino que deve ser respeitado sim, o direito a inviolabilidade do domicílio que muitas vezes é ignorado.     

Cássio Carneiro Duarte

Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás;

Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior de Direito;

Pós-graduando em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em parceria com Universidade de Coimbra – PT;

Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais;

Voluntário no Instituto Pró-Bono;

Advogado.

contato@carneiroduarte.com.br


[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XI — A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial

[2] Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

I – está cometendo a infração penal;

II – acaba de cometê-la;

III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

[3] Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caputdeste artigo, quem:

I – coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;

III – cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.

[4] LIMA, Renato Brasileiro, Manual de Processo Penal. Pg. 799. Ed. 2020.

[5] A repercussão geral apresenta o chamado efeito multiplicador, ou seja, o de possibilitar que o Supremo decida uma única vez e que, a partir dessa decisão, uma série de processos idênticos seja atingida. O Tribunal, dessa forma, delibera apenas uma vez e tal decisão é multiplicada para todas as causas iguais.  http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=168512#:~:text=A%20repercuss%C3%A3o%20geral%20apresenta%20o,para%20todas%20as%20causas%20iguais. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=168512#:~:text=A%20repercuss%C3%A3o%20geral%20apresenta%20o,para%20todas%20as%20causas%20iguais.

[6] https://www.conjur.com.br/2020-fev-26/invasao-domicilio-policia-gera-indenizacao-moradora

[7]http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=3774503&numeroProcesso=603616&classeProcesso=RE&numeroTema=280