O caso Sérgio Cabral e a colaboração premiada

Antes de adentramos no tema por hora escrito é viável entendermos de forma geral, o que é a colaboração premiada. Em primeiro lugar, o conceito de colaboração premiada é uma técnica especial de investigação que estimula a contribuição feita por um coautor ou partícipe de crime em relação aos demais, mediante o benefício, em regra, de imunidade ou garantia de redução de pena. Esse tipo de colaboração é por demais importante na investigação de algumas espécies de crimes, como os praticados por organizações criminosas, lavagem de dinheiro e corrupção[1].

Em segundo lugar, a palavra do colaborador sem o apoio em outro documento é suficiente para incriminar um terceiro (coautor ou partícipe)? Diferentemente do que acontece na Inglaterra e nos Estados Unidos — onde por lá é possível apenas a declaração do réu/colaborador ser considerada uma prova suficiente para condenação de um terceiro, afinal caberá aos jurados aferir se aquela declaração é verdadeira ou não — aqui no Brasil que instituiu um sistema diferente assemelhado ao que é realizado na Itália, portanto, é necessário outro elemento além, apenas, da palavra do indiciado/processado colaborador.

Tanto é assim que com a criação da Lei 13.964/19 (apelidada de lei anticrime), trouxe claramente pelo legislador — e nesse ponto julgo que é acertado — a imposição que incumbe à defesa instruir a proposta de colaboração e os anexos com os fatos adequadamente descritos, com todas as suas circunstâncias, indicando as provas e os elementos de corroboração[2]. Como se percebe, a intenção do legislador com isso é evitar que seja firmado com agentes do Estado, delações vazias[3], isto é, omissas ou mentirosas e sem nenhum outro meio de prova, apenas com à intenção de conseguir o(s) beneficio(s) ofertado(s). Como, inclusive, já tivemos na fatídica operação lava-jato[4].

Em terceiro lugar, com quem poderá ser firmado um acordo de colaboração premiada e quem é o responsável por auferir a legalidade do acordo? Apesar de existirem posições divergentes. O que deve prevalecer é aquilo que a lei estabelece que o acordo poderá ser firmado entro o colaborador assistido pelo seu defensor com o Ministério Público ou delegado de polícia e o responsável por analisar se acordo de colaboração premiada observou todos os requisitos que a lei manda cabe ao juiz que realizará a validação do acordo através de sentença.

O supremo tribunal federal está julgando essa semana, um caso importante e que ganhou ampla repercussão, diante dos supostos fatos graves apontados pelo colaborador (Ex-governador do RJ, Sr. Sérgio Cabral) contra um Ministro da Corte. Os temas em julgamento no Ag em Pet. n° 8.420 — STF, são: 1) se é possível a homologação de colaboração premiada realizada pela polícia sem o ministério público ser ouvido; 2) se é possível a homologação de uma colaboração premiada em caso de o colaborador ter ocultado ou mascarado o produto do crime durante o período de negociação da colaboração. 3)  a legalidade de uma das cláusulas do acordo de Cabral, que prevê a possibilidade do colaborador confessar outros fatos criminosos dos quais participou em até 120 dias após a assinatura do pacto com o Estado[5].

Inicialmente, respondendo o primeiro ponto além da Lei 12.850/13 possibilitar sim o delegado de polícia firmar colaboração premiada. O próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n° 5508 reconheceu a legitimidade do delegado de polícia em celebrar o acordo de colaboração premiada, portanto, não há óbice nenhum da autoridade policial firmar uma colaboração premiada.[6]

O segundo ponto não é legal o Estado através de seus agentes (Ministério Público ou delegado de polícia) realizarem um acordo versando sobre o produto ou proveito do crime para que este permaneça com o delator o que, flagrantemente, violaria o espírito da Lei.

Essa delação causou um barulho tremendo, mas, na prática, não chegou a lugar nenhum porque não veio nenhum elemento concreto que não seja apenas a palavra do atrasado réu/colaborador. Além disso, caso seja homologado esse acordo tritura o dever de sigilo, confiança e boa-fé[7]; traz uma nova modalidade de colaboração premiada que o colaborador irá descrever “novos” fatos delituosos envolvendo a orcrim somente após a homologação da colaboração premiada diferentemente do que manda a lei que o colaborador deve narrar todos os fatos ilícitos para os quais concorreu e que tenham relação direta com os fatos investigados antes da homologação.[8]

Ademais, mesmo que seja levado em consideração a colaboração do ex-governador, viola as regras do juiz natural[9] e competência[10] estabelecidos pela Constituição Federal e o regimento interno do Supremo Tribunal Federal, afinal os supostos fatos ilícitos revelados, primeiro, são conexos com a operação calicute que se encontram sob relatoria do Min. Gilmar Mendes[11] ,e, em segundo, caso tivesse que ter sido feito a homologação desse acordo por envolver um agente de estado detentor de foro por prerrogativa de função deveria ter sido feito pelo pleno da Corte, ou seja, com a decisão de todos os Ministros e não apenas a decisão de um, como no caso do Min. Edson Fachin.

Como se não bastasse, essa colaboração foi realizada com informações vazadas de forma seletiva, o ex-governador apontou vários parlamentares do MDB e executivos de empresas, porém, a mídia apenas apontou o Ministro do Supremo Tribunal Federal como uma forma para constranger a autoridade pública, ganhar cliques e chamar a atenção da população, já que vivemos a era do tribunal da internet e esse é implacável para abalar a credibilidade e lisura do poder judiciário.

Por outro lado, como bem apontado pelo Min. Gilmar Mendes em seu voto[12], o ex-governador já tentou firmar o mesmo acordo com Ministério Público Federal, do Rio de Janeiro, que recusou e usou como argumento: “diante das mentiras e omissões seletivamente implementadas por Sérgio Cabral durante a negociação de eventual acordo de colaboração premiada com o MPF, este órgão concluiu que o então candidato a colaborador não se portava com as necessárias boa-fé e lealdade processual que devem reger todo o negócio jurídico, inclusive a respectiva fase pré-contratual”.

Por enquanto o julgamento está 4×3 pela anulação da colaboração que deve ser confirmada pela Corte Constitucional para aplicar aquilo que está descrito na lei de organização criminosa e firmar as suas próprias decisões em casos decididos recentemente pelo próprio Supremo Tribunal Federal, e jogar na lata do lixo essa colaboração que é um verdadeiro nada jurídico e ao que parece é mais uma colaboração que serve como instrumento de politização da justiça criminal onde quem quer benefício pode falar tudo aquilo que os agentes de Estado querem ouvir.

O tema é bastante rico para um simples texto como este, mas, conforme o caso não me parece viável a homologação desse acordo de colaboração premiada por violar alguns institutos da colaboração premiada em especial a boa-fé e a transparência, e caso for aceito estaremos violando, inquestionavelmente, a Lei 12.850/13, e mais, atingindo à honra alheia com base apenas nas palavras de um colaborador, hoje, condenado a 267 anos de prisão! Fora as ações penais em curso. Uma última reflexão, será que ele seria capaz de mentir para sair dessa?

Por último, cabe ainda destacar e fazendo um exame aceca da prisão que sofre o ex-governador que se encontra preso há 5 (cinco) anos sem sombra de dúvida já se tornou desnecessária e com excesso, vigora ainda querendo ou não, o princípio da presunção de inocência não existe nenhuma condenação definitiva e muito bem poderia ser convertida a prisão preventiva em prisão domiciliar com uso de tornozeleira, retenção de passaporte ou outra medida, o que para o(s) processo(s) não atrapalharia em nada, pensando bem a regra é a liberdade e a exceção à prisão, mas, Cabral preferiu seguir o caminho da colaboração premiada.

Por: Cássio Carneiro Duarte. Advogado. pós-graduado em direito penal e processo penal, pela Escola Superior de Direito – ESD; pós-graduando em direito penal econômico, pelo Instituto Brasileiro de Ciência Criminais – IBCCRIM em parceria com Universidade Coimbra – PT; Membro efetivo do núcleo de estudo e pesquisa em direito penal econômico pelo Instituto Brasileiro de Direito Público – IDP.


[1] BENEVIDES. Cibele Guedes da Fonseca Colaboração Premiada. 2ª Edição, editora Del Rey pg. 59.

[2] Art. 3º-B. O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 4º Incumbe à defesa instruir a proposta de colaboração e os anexos com os fatos adequadamente descritos, com todas as suas circunstâncias, indicando as provas e os elementos de corroboração.   (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

[3] O Supremo Tribunal Federal reputa que sequer a instauração de inquérito é viável quando a palavra do colaborador não se fizer amparar por elementos de corroboração (Pet 7474 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, j. em 22.09.2020

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/acordos-de-delacao-de-joesley-e-saud-foram-rescindidos-informa-pgr.ghtml

[5] BOTTINI. Pierpaolo Cruz. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-24/direito-defesa-destino-delacao-premiada-cabral, acessado em 27 de março de 2021.

[6] Sobre isso em seu voto o Min. Luis Roberto Barroso muito bem esclarece que: “Sobre isso, no seu voto o Min. Luís Roberto Barroso muito bem esclarece que: “A questão foi resolvida há menos de três anos, em acórdão proferido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes e efeito vinculante. Para a superação do entendimento firmado seria necessária uma clara alteração das circunstâncias fáticas ou normativas ou, ainda, a apresentação de razões jurídicas extremamente fortes. Não reputo que tenham sido demonstradas alterações das circunstâncias fáticas, nem trazidos ao debate argumentos novos que autorizem a modificação da compreensão estabelecida em 2018. Além disso, do ponto de vista normativo, a Lei n° 13.964/2019 alterou substancialmente o regime da colaboração premiada e, ainda assim, manteve a previsão expressa de legitimidade do delegado de polícia para a celebração do acordo (art. 4°, §2°)”.

[7] Lei de Organização criminosa – Lei 12.850/13. Art. 3º-B. O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm

[8] Lei de organização criminosa – Lei 12.850/13. Art. 3° (…) §3° No acordo de colaboração premiada, o colaborador deve narrar todos os fatos ilícitos para os quais concorreu e que tenham relação direta com os fatos investigados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm

[9] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: (…) b) nas infrações penais comuns, presidente da República, o vice presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[10] Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal – Art. 5º Compete ao Plenário processar e julgar  originariamente: I – nos crimes comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente da República, o Presidente do Senado Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, bem como apreciar pedidos de arquivamento por atipicidade de conduta; (Redação dada pela Emenda Regimental n. 49, de 3 de junho de 2014). Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf

Art. 103 (…) § 1° O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[11] Feitos originários de relatoria do Ministro Gilmar Mendes (STF) relacionados a op. calicute: HC 150.555, HC 141478, HC 142993, RCL 42644 e RCL 43479.

[12] Voto na integra do Ministro Gilmar Mendes na PET n° 8482 – STF. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/5/B774D5644ED8AD_gilmar_Pet8482.pdf