CPI, o caso Roberto Dias e o direito ao silêncio

O que se tem atualmente lotado a pauta dos blogs, jornais e telejornais é a CPI da covid e o que chamou atenção essa semana foi o presidente da CPI Senador Omar Aziz dar voz de prisão ao ex-diretor de logística do Ministério da Saúde Roberto Dias[1] por que, em tese, estaria em flagrante delito cometendo o crime  falso testemunho[2].

A comissão parlamentar de inquérito após ser iniciada serve para apuração de fato determinado[3]. No Brasil, nós já tivemos inúmeras CPIs como exemplo: CPI da Petrobras, CPI do narcotráfico, CPI dos bingos, CPI do BNDS, CPI dos correios, CPI dos fundos de pensão, CPI dos PC Farias e outras que já causaram desde a cassação de mandato parlamentar, juiz sendo preso, até a cassação do ex-presidente Fernando Collor etc.

Além disso, a CPI detém poderes iguais das autoridade judiciais, além de outros previstos nos regimentos das suas respectivas casas[4]. Por ser a CPI um misto de inquérito policial e deter o poder instrutório, após o início da CPI conforme manda a lei[5] poderão as CPIs determinar as diligências, requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento pessoal de qualquer autoridade federal, estadual ou municipal, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar de repartições públicas e autárquicas informações e documentos e transportar-se aos lugares se fizer necessário sua presença.

Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, a CPI pode por autoridade própria, ou seja, sem necessidade de qualquer autorização judicial, sempre com decisão fundamentada e motivada, observar todas as formalidades e determinar quebra de sigilo fiscal, quebra de sigilo bancário, quebra de sigilo de dados telefônicos em caso haja extrema necessidade, ouvir testemunhas e ouvir investigados, portanto, trata-se, indubitavelmente, de um importante meio de investigação — não de julgamento — realizado no âmbito político[6].

Outra questão relevante é se a CPI pode impor uma prisão para um investigado como ocorreu essa semana com o Roberto Dias? Primeiro é necessário ser feita a diferenciação entre investigado e testemunha que são atores diferentes. O investigado é um mero suspeito de ter cometido um ilícito penal, por outro lado, a testemunha é quem presencia o cometido de um crime, com isso traz uma relevante consequência jurídica a de dizer a verdade.

A testemunha é obrigada a dizer aquilo que viu, porém, caso esse fato o incrimine também poderá sim silenciar, ou seja, ficar calado. Já em relação ao imputado/indiciado/acusado este tem o direito de permanecer em silêncio ou mentir, afinal vigora no Brasil, assim como nos países civilizados o direito de ficar em silêncio.

Ademais, essa garantia está expressa na Constituição Federal[7], está também expressa no Pacto de Interamericano de Direito Humanos incorporado na legislação brasileira[8], e por último e não menos fundamental o direito ao silêncio está também previsto no Código de Processo Penal[9] e diferente do que muitos pensam o silêncio não causará prejuízo nenhum, isto é, não vigora a ideia rasa do “que quem cala consente” ou “quem não deve não teme”.

O crime de falso testemunho, deve ser imputado apenas a quem esteja na condição de testemunha e não cabe ao indiciado/acusado esse crime, porém ao último este pode ser processo no caso da autoacusação falsa de o cometimento de um crime, que é a hipótese de determinada pessoa assumir a prática de um ilícito para livrar da responsabilidade penal um terceiro.

Agora um ponto de tensão sobre o tema é quando a autoridade estatal interroga o depoente na qualidade de testemunha, mas somente no curso do ato se descobre que a mesma é investigada. Sobre isso, muito bem explica a professora e advogada Maíra Fernandes: “é preciso um cuidado adicional, pois pode ser — e frequentemente o é — muito tênue a linha que divide uma testemunha de um investigado. A menos que já haja investigação paralela em curso, muitas vezes a dita testemunha só saberá se será ou não investigada ao final dos trabalhos, com a apresentação do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito”[10]. Por isso, se mostra tão necessário a utilização do habeas corpus para garantir o direito do silêncio amparado na Constituição Federal e nas leis.

O Supremo Tribunal Federal em todas as CPIs foi provocado para se manifestar sobre o tema e com os casos que foram chegando aquela corte de justiça, hoje temos uma série de decisões que garantem ao imputado o direito de permanecer em silêncio mesmo que este seja convocado para depor perante uma Comissão Parlamentar de Inquérito, o caso um caso marcante foi do Lacyr Vianna, à época presidente da Associação Nacional de Autores, Compositores e Intérpretes da Música, de não se autoincriminar perante a Comissão Parlamentar de Inquérito, instalada na Câmara dos Deputados para apurar irregularidades no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Ele havia sido preso em flagrante por falso testemunho. A decisão, contudo, fundamentou no Habeas Corpus n° 73.035-3/DF e concluiu pela atipicidade da conduta na inexigibilidade de conduta diversa, e não na garantia constitucional de não autoincriminação[11].

Outrossim, durante essa CPI da covid inúmeros habeas corpus foram impetrados perante o Supremo Tribunal Federal para assegurar o direito constitucional de todos os cidadãos. Ex. caso Silvio Barbosa[12], Filipe Garcia[13], caso Wilson Lima[14], e outros. Convém ser citado um pequeno trecho do brilhante voto do Min. Alexandre de Moraes, no Habeas Corpus n° 203.736/DF: “O direito de permanecer em silêncio, à luz do disposto no art. 5º, LXIII, da Constituição da República, apresenta-se como verdadeiro complemento ao princípio do due process of law e da ampla defesa, sem que por ele possa ser responsabilizado, uma vez que não se conhece em nosso ordenamento jurídico o crime de perjúrio. O silêncio do réu no interrogatório jamais poderá ser considerado como confissão ficta, pois o silêncio não pode ser interpretado em seu desfavor”[15].

Por fim, ficar em silêncio não é uma grande sacada ou inovação na legislação, aliás sempre esteve presente nos países civilizados como nos Estados Unidos, exemplo disso se deu no caso Miranda. O direito ao silêncio é uma norma fundamental para evitar que confissões forçadas como fizeram ou fazem, os países autoritários, esse direito — e não favor —, é incompreendido por muitos que vociferam ignorância e às vezes má-fé, contra uma garantia constitucional de todos! Ainda sobre isso, vale apena citar, Padre Fabio de Melo: “Quero apenas o direito de ficar calado sem ter que dizer o porquê de estar assim”[16].

Cássio Carneiro Duarte é advogado. pós-graduado em direito penal e processo penal, pela Escola Superior de Direito – ESD; pós-graduando em direito penal econômico, pelo Instituto Brasileiro de Ciência Criminais – IBCCRIM em parceria com Universidade Coimbra – PT; Membro efetivo do núcleo de estudo e pesquisa em direito penal econômico pelo Instituto Brasileiro de Direito Público – IDP. E-mail contato@carneiroduarte.com.br


[1] https://exame.com/brasil/cpi-da-covid-19-omar-aziz-da-voz-de-prisao-a-roberto-dias/

[2] Art. 342: “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, tradutor, contador ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial ou em juízo arbitral:” Pena – Reclusão, de 2 a 4 anos, e multa (Pena com a redação dada pela Lei nº 12.850/13). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm#art342

[3] Sobre Isso: “A CPI, ao ser instaurada, deve ter por objeto a apuração de fato determinado. Considera-se fato determinado, de acordo com o art. 35, §1°, do RICD, o acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do País, que estiver devidamente caracterizado no requerimento da constituição da Comissão, não podendo, portanto, a CPI ser instaurada para apurar fato exclusivamente privado ou de caráter pessoa”. Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, pg.618, Editora Saraiva, Ed. 20ª.

[4] Sobre isso: “As CPIs terão poderes de investigação, próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos internos das Casas”. Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, pg.619, Editora Saraiva, Ed. 20ª.

[5] Sobre isso: “A comissão parlamentar de inquérito realiza, assim, verdadeira investigação, materializada no inquérito parlamentar, que se qualifica com um “procedimento jurídico-constitucional revestido de autonomia e dotado de finalidade própria” MS n° 23.652, Rel. Min. Celso de Mello).

[6]  https://www.conjur.com.br/2021-jul-07/escritos-mulher-direito-silencio-nao-podeser-mera-obra-ficcao

[7] Art. 5°, inciso LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[8] Art. 8, inciso 2, letra g “direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. Disponível em https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm

[9] Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm

[10] https://www.conjur.com.br/2021-jul-07/escritos-mulher-direito-silencio-nao-podeser-mera-obra-ficcao

[11] AMARAL, Thiago Bottino do. Direito ao silêncio na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

[12] http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346990288&ext=.pdf

[13] http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346807937&ext=.pdf

[14] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC202940.pdf

[15] Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n° 203.736/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346807937&ext=.pdf

[16] https://www.pensador.com/frase/NzIyMTM2/