Violência doméstica, corona vírus e os novos e velhos desafios

Desde os primórdios até hoje em dia, a luta constante das mulheres em fincar a bandeira da igualdade de gênero não para, foi assim para conseguir o direito ao ingresso ao uma universidade em 1879, o direito de votar que veio expressamente com a Constituição Federal de 1934, o direito de trabalhar em 1962, o direito ao divórcio e a divisão de poder familiar de 1977, dentre outras conquistas históricas.

Ademais, desde que foram assinados pelo Brasil a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher em Belém, a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Violência contra Mulher, o Estado brasileiro deu sinais de que passaria a atuar conjuntamente com outros países nessa frente contraria a violência contra à  mulher.

E posteriormente, já em 2006, após a condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, veio, ates tarde do que nunca, outra considerável conquista não só da mulher, mas de toda sociedade civil foi o surgimento da Lei n° 11.340 (lei Maria da Penha) criando novos instrumentos para o dia-a-dia forense como a medida protetiva de urgência que até então não existia visando coibir a violência de gênero.

Desde então, foi flagrante os avanços na repressão e punição de agressores, mas com o surgimento do corona vírus (covid-19) que impôs o isolamento social e vem colocando em cheque tudo que foi diuturnamente obtido no enfrentamento e conscientização da coletividade.

Cito como exemplo, o número de casos de medidas protetivas de urgência, impostas pelo poder judiciário do Estado do Pará no mês de junho deste ano, a justiça registrou 564 medidas protetivas em processos de violência contra a mulher no mês de junho, já no ano de 2019 no mesmo período o número de imposto de medidas de urgência foi de 445[1].

Esse infeliz número não é uma realidade apenas do Estado do Pará, em São Paulo no mês de junho de 2020 foram concedidas 5.104 medidas protetivas de urgência e em 2019 foram concedidas 4.586 medidas de urgência, ou seja, houve um aumento de 21,9% de feitos de competência da lei maria da penha[2].

Outrossim, os casos de violência contra à mulher no seio familiar não é um fato isolado somente aqui no Brasil. Ex. nos Estado Unidos com o isolamento social houve um aumento 12% até mês passado envolvendo casos de violência doméstica[3] e também no Reino Unido, Espanha, Itália e Rússia[4].

Por outra volta, é importante ser dito que, a violência que a lei Maria da Penha tem como objetivo reprimir e punir são a violência física, patrimonial, sexual, moral e psicológica.

E mais, a legislação penal impõe que não é possível ser aplicado nenhum instituto despenalizador, ou seja, não cabe nenhuma “negociação” como a transação penal, suspensão condicional do processo e com implementação do “pacote anticrime” que surgiu o mais novo meio de barganha que é o acordo de não persecução penal e que também não se aplica em casos envolvendo a violência doméstica.

Além disso, mesmo após o surgimento da lei Maria da Penha o legislador visando aprimorar a legislação criou através de leis vários institutos que implementaram o combate à violência doméstica.

Como a aplicação de medida protetiva, se no caso concreto for detectado a existência de risco atual ou iminente para vítima, pode o delegado quando não houver na cidade ou localidade um juiz titular, ou policial Militar quando não houver nem delegado, ou juiz titular na localidade, afastar o agressor do lar e em ambos os casos devem comunicar um juiz de direito em até 24 horas para este decidir se mantém ou revoga a medida protetiva de urgência[5].

Também vale registrar que, é permitido a apreensão de arma de fogo sob posse de agressor em casos de violência doméstica[6] e, com a novidade implementada pela lei obrigou a autoridade policial, diga-se delegado informar sobre a condição de a ofendida é uma pessoa com deficiência, e se da violência sofrida resultou deficiência ou agravamento de deficiência preexistente[7], por fim foi garantido a matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência doméstica e familiar em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio[8].

Em 2020, em boa hora, foi promulgada nova lei que considera o atendimento às vítimas de violência doméstica serviço essencial e não poderá ser interrompido mesmo enquanto durar a pandemia do corona vírus, especialmente para realização do corpo de delito e por questões sanitárias ampliou a forma de atendimento às vítimas que poderá ser feita on-line[9].

Diante dos inúmeros casos de violência doméstica e familiar, com pandemia e com o isolamento social era para ser uma tranquilidade para mulher ficar em casa, porém estar em casa não é sinônimo de estar protegida e segura, muito pelo contrário.

Dito isto, existem diversos meios para facilitar a denúncia além do já tradicional 190 da Polícia Militar e o 197 da Polícia Civil, como o disk 180 que é a central de atendimento à mulher, através do aplicativo Direitos Humanos Brasil disponível gratuito para Apple e IOS, na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) inclusive no site está disponível o atendimento por chat e com acessibilidade para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Também é possível receber atendimento pelo Telegram. Basta acessar o aplicativo, digitar na busca “Direitos Humanos Brasil” e mandar mensagem para a equipe da Central de Atendimento à Mulher e a campanha do sinal vermelho a ideia é incentivar a vítima a desenhar um “X” na mão e exibi-lo ao atendente ou farmacêutico. Assim, o balconista acionará as autoridades competentes.

Por fim, apesar das inúmeras mudanças que houveram na legislação visando proteger especialmente à mulher contra a violência doméstica e familiar, mas com o corona vírus a batalha hercúlea, se percebe flagrantemente que não adianta mudar só a legislação, a mudança deve ser cultural para dirimir esse cancro que assola os lares brasileiros, a final só a mulher é que o dom divino de dar à luz. O que se espera é como diria o poeta nordestino Bráulio Bessa: — Uma dose de bondade para curar essa dor e trocar a valentia da agressão, pela valentia do amor.

Cássio Carneiro Duarte. Advogado. Pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Escola Superior de Direito, Pós-graduando em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Ibccrim em parceria com Universidade de Coimbra. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e voluntário no Instituto Pro Bono.

Email: contato@carneiroduarte.com.br


[1] http://www.tjpa.jus.br/PortalExterno/imprensa/noticias/Informes/1099120-junho-registra-564-medidas-protetivas-no-pa.xhtml

[2] https://www.conjur.com.br/2020-jul-15/numero-denuncias-violencia-domestica-volta-subir-sps

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/05/22/violencia-contra-mulheres-aumenta-nos-eua-em-periodo-de-isolamento-social

[4] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/05/21/violencia-domestica-cresce-em-paises-da-europa-durante-isolamento

[5] Lei n° 13.827/19;

[6] Lei n° 13.880/19;

[7] Lei n°13.836/19;

[8] Lei n° 13.882/19

[9] Lei n° 14.022/20;